Gabriela Brasil – Rios de Notícias
MANAUS (AM) – O trabalho de ‘cuidado’ foi tema da redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) desse domingo, 5/11, e despertou discussão a respeito da desigualdade existente na maioria dos lares brasileiros: o tempo desproporcional gasto por mulheres em atividades de manutenção da própria vida cotidiana da casa em comparação aos homens.
Os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados em agosto deste ano, revelam que as mulheres dedicam aproximadamente 9,6 horas por semana a mais do que os homens em afazeres como limpeza da casa, cozinhas e cuidados de crianças e idosos em 2022.
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A pesquisa englobou atividades não remuneradas que historicamente recaem às mulheres. No ano passado, o dispêndio de tempo de mulheres ao trabalho de cuidado por semana foi de 21,3 horas, enquanto que o tempo gasto pelos homens cai quase pela metade: 11,7 horas.
De acordo com a psicóloga Samiza Soares, o trabalho de cuidado é relacionado ao apoio emocional, atenção e suportes necessários para estabelecer a saúde física e o bem-estar de outras pessoas, os quais são fundamentais para a economia.
“Essas funções são essenciais para o funcionamento das famílias, permitindo que outros membros trabalhem ou estudem, e também são cruciais para o funcionamento da economia, embora muitas vezes sejam subvalorizadas. O trabalho de cuidado é a base do funcionamento social, promovendo o desenvolvimento humano e o equilíbrio na vida das pessoas”
Samiza Soares. psicóloga
Desvalorização
A advogada de Direitos Humanos, Alichelly Ventura, apontou que o papel atribuído às mulheres como responsáveis pelos afazeres domésticos e o de cuidado vem da construção de uma sociedade historicamente machista e patriarcal.
“No próprio direito brasileiro, a gente só teve a equiparação do poder familiar entre homens e mulheres a partir do código civil de 2002, e a partir da Constituição de 1988 como um direito fundamental onde pais e mães devem exercer igualmente o direito sobre seus filhos, e o dever de cuidado é um desses direitos”, destaca Alichelly Ventura, advogada de Direitos Humanos.
Ainda hoje, o trabalho de cuidado realizado por mulheres é invisível e desvalorizado pela sociedade. Para a psicóloga Samiza Soares, a falta de valorização deste tipo de trabalho tem relação com a concepção do que é visto como trabalho a partir de um recorte de gênero.
“Este desvalor é mais uma expressão de como os valores tradicionais e estereótipos de gênero influenciam a percepção do que é considerado ‘trabalho’ e, portanto, merecedor de reconhecimento e compensação financeira. Está relacionado à falta de reconhecimento das habilidades emocionais e do impacto positivo que o trabalho de cuidado tem na sociedade”, disse a psicóloga.
Consequências
O trabalho de cuidado, conforme a advogada Alichelly Ventura, ainda não é regulamentado pela legislação brasileira. Como consequência, as mulheres que trabalham com o cuidado não remunerado dentro de casa não recebem nenhum tipo de aposentadoria ou pensão pelo tempo de trabalho realizado ao longo dos anos.
“Não existe qualquer ajuda de custo justamente para que ela ter um momento em que encerre estas atividades e tenha a contrapartida do serviço prestado. Qualquer relação conjugal deve contribuir para o crescimento dos filhos, quanto aos cuidados internos da casa”
Alichelly Ventura, advogada de Direitos Humanos
Como resultado da desvalorização do trabalho de cuidado, de acordo com a psicóloga Samiza, há a exaustão, estresse e problemas emocionais enfrentados por mulheres.
“Além disso, a sociedade perde a chance de reconhecer a importância das habilidades emocionais e práticas inerentes a esse trabalho, refletindo negativamente na valorização das emoções e do cuidado em geral”
Samiza Soares, psicóloga
Medidas
A advogada Alichely Ventura pontua que para o trabalho do cuidado seja mais valorizado é necessário que o patriarcado e a ideia que exista uma natureza feminina essencialmente voltada para as atividades do cuidado sejam combatidos.
“Esse recorte tem que acontecer na criação dos filhos a partir de ações, não apenas de fala. Então, tem que dar exemplo sobre a participação de ambos [homens e mulheres] para a construção do ambiente familiar”
Alichelly Ventura, advogada de Direitos Humanos
A advogada também defende a regulamentação do trabalho de cuidado na legislação para garantir mais segurança às mulheres, e que a participação das escolas na implementação de debates que critiquem a divisão de trabalho desigual entre homens e mulheres.
“Qualquer ser humano está habilitado para lavar pratos e fazer a comida de dentro da casa. Isso torna um ser humano capaz de prover alimentos, estrutura emocional e organizacional de sua própria família”, conscientiza Alichelly Ventura