Vívian Oliveira – Rios de Notícias
MANAUS (AM) – Uma mulher é condenada a prisão por filmar o namorado matando uma criança de sete anos. Lá, eles apagam a memória dela e inserem-na em um local, parecido com um museu. Seu castigo eterno é ser um espetáculo. É colocada em situações de perigo e os visitantes do museu a filmam e nada fazem para ajudá-la.
O episódio “Urso Branco”, da série “Black Mirror”, é uma clara representação da nossa sociedade que, diante de uma tragédia, prefere filmar e alimentar a sociedade espetaculosa.
No dia 13 de abril, fotos da autópsia de Marília Mendonça foram vazadas na internet e causaram revolta em familiares e fãs. As imagens foram divulgadas ilegalmente do Instituto Médico Legal e foram feitas quando a artista morreu em um acidente aéreo em Piedade de Caratinga, em Minas Gerais.
Em 2015, no acidente que tirou a vida do cantor sertanejo Cristiano Araújo e de sua namorada, Allana, um vídeo e diversas imagens do corpo do cantor foram compartilhadas por dispositivos móveis e pelas redes sociais. A família do cantor luta até hoje pela remoção do material das redes sociais. Felizmente, nesta terça-feira, 25/4, o Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO) determinou que o Facebook efetue a retirada dos servidores da rede social, além do aplicativo de WhatsApp.
É cada vez mais comum ver pessoas pegando seus smartphones e começando a filmar em vez de oferecer ajuda imediata. Esse comportamento tem levantado questionamentos e gerado debates sobre a ética e a moralidade de priorizar a gravação de vídeos em situações críticas em vez de ajudar as vítimas. Mas afinal, por que muitos preferem filmar em vez de ajudar em casos de desastres ou situações de perigo?
Sociedade do espetáculo
No livro, ‘A Sociedade do Espetáculo’, de 1967, o filósofo francês Guy Debord faz uma crítica à sociedade moderna, especialmente à de consumo e à cultura de massas, que é dominada pelo espetáculo. Ou seja, pela representação e pela imagem superficial, em detrimento da realidade concreta, os produtos são transformados em mercadorias fetichizadas e as relações humanas são mediadas pelo valor de troca.
Ele descreve o espetáculo como um sistema de alienação que transforma a vida cotidiana das pessoas em uma série de imagens e simulacros (imitações), onde a mercantilização e a obsessão pela aparência substituem a autenticidade e a experiência direta. Para o estudioso, a alienação resultante da espetacularização da política, a imagem e a propaganda são usadas para manipular e controlar as massas.
“Debord já dava indicações de que a nossa sociedade, a partir de uma nova cultura de bens de consumo, estava desenvolvendo e assumindo um comportamento de espetacularização da própria realidade”, explica o professor sociólogo e doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Israel Pinheiro.
Além disso, Debord argumenta que o espetáculo cria uma sociedade passiva e conformista, em que as pessoas são consumidoras passivas de imagens e entretenimento, em vez de participantes ativos na construção de suas próprias vidas. Ele critica a sociedade de espetáculo como uma forma de dominação que perpetua a exploração capitalista e a opressão social.
Para Pinheiro, é importante analisar a diferença do que foi a internet há 30 anos e o que ela representa hoje a partir das plataformas de redes sociais.
“Dos anos 90 para cá, já houve o que chamamos de processo de subjetivação e incorporação de determinados hábitos. E isso inclui esse de transformar e monetizar aquilo que é a vida cotidiana. Não à toa tem nichos de produtores de diversos conteúdos. Cada pessoa pode se apresentar da maneira que quiser para ganhar curtidas”
Israel Pinheiro, professor e doutor
“E é importante que se fale que as fotos vazadas do corpo de Marília Mendonça é um caso horrível porque é criminoso. As imagens divulgadas eram de dentro de uma instituição, como se tivessem sido vazadas ou roubadas. Mas não foi. Alguém gravou e alguém postou”, denunciou.
O artigo 2º do Código Penal Brasileiro prevê uma pena de um a três anos de prisão, além de multa, o vilipêndio de cadáver, que é o crime de desrespeito aos mortos e ainda estende a punição para cadáver e suas cinzas. É um crime comum, podendo ser feito por qualquer pessoa, até mesmo familiares do morto.
Ajudar é melhor do que gravar
Para a titular da Delegacia Especializada em Crimes Contra a Mulher, Débora Mafra, imagem de celulares e filmagem de câmeras ajudam. Mas o mais importante é ajudar.
“Muitas pessoas utilizam as imagens somente para postar nas redes sociais invés de auxiliar as vítimas. Às vezes é mulher gritando, chorando ou, até mesmo, apanhando no meio da rua. Mas as pessoas decidem registrar, achando que é muito melhor para publicar na internet”, revelou.
A delegada orienta que o certo é primeiro salvar a vítima. Nunca deixar de prestar socorro imediato para evitar que ocasione em morte.
“Realmente, a gente não pode banalizar a violência, ao filmar e divulgar vídeos de crimes ou tragédias como o que ocorreu com o corpo da cantora Marília Mendonça, trazendo uma revitimização da família que já está fragilizada e sofrida”, disse.
“Divulgar esse tipo de material a qualquer preço, apenas para satisfazer o próprio ego, é irresponsável e falta conscientização. Quem tem informação, tem que informar à polícia, e não utilizá-lo como uma atração de um programa televisivo”, concluiu Débora.
O comportamento de filmar em vez de ajudar em situações de perigo não é uma escolha universal. Muitas pessoas ainda priorizam a ajuda direta às vítimas e trabalham para prestar assistência imediata em casos de desastres ou emergências. A filmagem em situações de perigo também pode ter um propósito legítimo.